quinta-feira, 4 de março de 2021

A

 A, ao fim de muitos anos de um casamento ardilado, resolveu pôr-lhe termo.
A, esqueceu-se, no entanto, ou não foi suficientemente atenta ao meio, que, um casamento deitado fora quando tudo se condiciona pela génese celular, não foi a decisão mais sensata.
A está metida no limbo mais denso, forçada a viver com o marido quando já não o tem, quando já não o quer, quando já não o suporta, quando, se lhe faz fel, sequer olhá-lo, respirá-lo, senti-lo.
A está, oficialmente, sem poder trabalhar, tem um negócio de vão descada, um desses que Costa e sus muchachos entendem que não pode servir cafés, mas deveria ter um em que se carregam telemóveis, vendem produtos de beleza, ou será estética... produtos naturais, seja isso o que fôr; A também não vende jogos de azar, ou será de sorte...A não vende drogas, tabaco ou é cangalheira, nem sequer desratiza.
A, ainda assim, arrisca, vai ao seu próprio mercado, em que impera a basbaca contemplativa, vendendo olhares, trejeitos de solidão, volúpia, e muito desejo, a motoristas, assim como ela tristes, e tenta sufragar com mais alguns cobres a fantástica fortuna que lhe pagam para ficar, sem fazer, aparentemente, nada: 400 paus.
A, ainda que metida nestas tristezas todas, nestas incúrias que o tempo lhe trouxe, respira esperança, ainda que não saiba que esta lhe está em grande parte vedada, porque depende da banca para se livrar do marido, para lhe dar a parte que é sua por direito; porque A, vai ao banco e o banco não quer, de momento, nada com A: o banco não precisa de abrir uma agência, o banco não precisa de lhe vender um cartão de crédito, um seguro, uma casa, umas férias, móveis ou um carro.
O banco tem de reservar a substancial fortuna que A precisa, para emprestar a quem denota precisar: a quem   quer criar uma App, a quem vai investir em acções, a quem quer prospectar na queda de uma empresa, e dão como garantia uma morada fiscal.
A não tem esse gigantismo opulento, nem sabe sequer, que o banco apenas quer o seu dinheiro para o poder emprestar a quem não quer arriscar o próprio, na consecução de negócios menos escrutinados, porque o canal de chegada ao banco, desses, não é o mesmo que A.
A, nestes conturbados, indecisos, agrestes, para muitos de nós, tempos, ainda não totalmente consumados; vai, se quiser ser dona de si, ainda que não do futuro, deixar a casa, onde vive com o marido e a filha, fazer malas e zarpar, porque a coisa pode ficar preta, ou será negra...
Quantas A, haverá por ai, presas na mais débil condição económica, presas a um modo de vida que não querem, desejam ou suportam?
Esta sociedade, que é a de todos, profusamente arreigada a valores materiais, não se faz por esperança, valores de felicidade, ou respeito pelo outro!
Quando as Peraltas deste mundo, se manifestam, crentes em valores maiores que todos poderíamos abraçar, imediatamente surge em nós, em quase todos nós, o mais básico, o mais mesquinho, o mais rasteiro, o mais ignominioso.
A está condicionada a viver outro modo de vida que não o dela!
Até quando, A, vais acreditar que é possível, esse sonho, vago, mas imenso, que anseias por concretizar????...